Por David Natan, Felipe Fernandes, Gabriel Lapolla, Guilherme Ramos, Matias d’Almeida
Samuel Romero
“Algumas vezes, quando eu falei que morava na Mooca, me falaram que eu não tinha cara de italiano. Existem coisas que doem mais, mas querendo ou não, não é algo bacana né?. Eles acabam percebendo o sotaque mais puxado, dá pra perceber um espanhol lá dentro”.
Samuel Romero, 26, venezuelano, emigrou de seu país para a Mooca há dois anos e relata o sentimento de morar num bairro com uma fama migratória de uma cultura que não é a sua. Segundo ele, há um sentimento de ruptura e deslocamento, principalmente quando comparado aos outros que também se identificam como imigrantes, porém vivem um bairro que reflete sua marca na cidade.
Relatos como o de Samuel nos levaram a questionar como a Mooca, um distrito conhecido por muitos pela imigração, particularmente italiana, tem abraçado os novos imigrantes que chegam.
A História da Mooca, a famosa Itália Brasileira
Com o fim da escravidão no sec. XIX o Brasil vive os efeitos de dois fatores: “a negação do governo brasileiro em realocar a mão de obra antes escravizada e o desejo de embranquecer.”, conta a professora… “Com a imigração de diversos pontos da Europa chegam na antiga Ilha de Vera Cruz entre os países a imigração estimulada estava a Itália, que estava lidando com uma série de problemas internos, após a unificação do país em 1870 […] A contribuição italiana se deu pelo volume de emigrados trazidos para as lavouras de café e para a incipiente industrialização da década de 1870, coincidindo com a demanda por novos braços na lavoura, fruto das leis que foram gradativamente extinguindo o trabalho escravo no país. Eles estão na chamada ‘Grande Imigração’ que, entre 1870-1899, trouxe para o país mais de dois milhões de indivíduos.”, diz a Professora de história Silvia Cristina Siriani, da FMU.
Após muitos anos nas lavouras de café, os imigrantes se encaminharam para os centros urbano, onde desenvolveram sua identidade na indústria, particularmente na indústria têxtil. Um dos mais conhecidos imigrantes foi Cotonifício Rodolfo Crespi, que em 1897 inaugurou uma das mais famosas indústrias têxteis de São Paulo. A indústria de Cotonifício, onde funcionários desta fábrica eventualmente iriam criar o Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube, que futuramente mudaria seu nome para Clube Atlético Juventus, como uma referência ao Juventus de Turim.
A professora também cita o elemento linguístico como um facilitador na integração cultural, ela explica; “O idioma italiano, assim como o espanhol, vem de uma mesma raiz linguística em relação ao português, que é o latim, o que favoreceu o entendimento entre os recém-chegados e a população local ”De acordo com dados do IBGE, entre os anos de 1870 até 1920 italianos representavam quase metade de todo os imigrantes, da culinária até a arquitetura haviam traços de herança italiana, como Museu da Imigração o teatro Arthur Azevedo. O fato desses traços já terem se tornado parte do distrito contribuíram para a fama de “Itália brasileira” que temos hoje.
Um exercício que muitos descendentes de italianos podem fazer é entrar no site Antenati e procurar as origens de sua família de seu sobrenome.
Um Lugar só de Italianos?
Como bem explicou a professora…. o discurso romântico sobre a imigração no brasil esconde um histórico de preconceito, racismo e xenofobia.
Ainda de acordo com a professora Silvia, a integração cultural foi facilitada pela semelhança linguística e cultural, porém esse não foi o maior dos fatores, mas sim a tentativa de “balanceamento étnico” que o governo brasileiro vislumbrava na época. “O europeu seria uma espécie de vetor para o branqueamento da população brasileira, maciçamente afrodescendente.” A professora destaca que essa ideia tem efeitos na sociedade paulistana até hoje: “Mais do que um etnocentrismo, o paulistano está preso a um eurocentrismo, fruto justamente da presença maciça de europeus nas primeiras ondas imigratórias. No século XIX o europeu foi visto como a solução para dois problemas da sociedade escravocrata nacional: primeiro substituir a mão de obra escrava, por um tipo de mão de obra livre e assalariada, supostamente especializada. Digo supostamente, pois não creio que um imigrante da cidadezinha de Aprigliano, na Calábria, tivesse alguma vez na vida visto um pé de café, quanto mais saber como plantá-lo, colhê-lo, secá-lo, torrá-lo e beneficiar-se dele… O segundo problema é de teor etnocêntrico, sem dúvida alguma, e está atrelado às doutrinas cientificistas de cunho racial, como a eugenia e o darwinismo social, muito em voga na Belle Époque.”.
Em um momento em que o negro “ganhava”’ sua liberdade, ou melhor perdia suas correntes, já eram traçados planos para perpetuar a segregação entre aqueles da classe dominante que uma mão de obra, fronteira entre brancos e negros a imigração europeia é estimulada “As elites cafeeiras paulistas tinham a pretensão de “europeizar” etnicamente a população, em três ou quatro gerações” diz a professora, e conforme o exaltado imigrante europeu chegava para atender os desejos de puridade das elites os habitantes anteriores eram afastados para as margens do centro urbano, e isso não é de exclusividade da Mooca, mas presente na maior parte dos atuais centros culturais de levas de imigração.
Essa informação é também demonstrada por Julia Bartsch, formada em psicologia na USP, que passou ano estudando a imigração em São Paulo, escrevendo um TCC sobre a reconhecer-se dos imigrantes e refugiados vindos da República Democrática do Congo; “O fato é que São Paulo, há um século, quando houve o grande fluxo migratório europeu e japonês, era uma cidade que crescia, mas a maioria das pessoas vivia no que hoje podemos chamar de centro expandido.”, diz ela, “É um país que teve uma política de branqueamento entre o fim do século XIX e o início do século XX, facilitando a vinda de imigrantes de origem europeia, deixando à deriva pessoas que antes viviam escravizadas e seus descendentes diretos.
Também vale mencionar que não foi somente o motivo da imigração aquilo romantizado no segmento anterior deste texto com a intenção de armar uma arapuca para você, o leitor, até mesmo o já mencionado Rodolfo Crespi foi responsável por desserviços na história da cidade, sua fábrica foi alvo de protesto, realizou fabricações para soldados italianos durante a segunda guerra e um jornal patrocinado pelo empresário, escrito em italiano concordava abertamente com os ideais de Mussolini, o que poderia parecer óbvio quando consideramos que estamos falando de um abastado italiano no início do séc.. XX, porém muitos estariam contentes em acreditar em uma história idealista de um imigrante sem saber que ele apoiava o fascismo em uma das suas formas mais explícitas.
Ademais, o site citado, onde os descendentes de italianos podem ir buscar suas origens na sua pátria ancestral, acabam, sobre uma outra perspectiva, enquanto jovens com descendência europeia conseguem traçar sua ancestralidade com facilidade por inúmeros documentos e acervos, indígenas e afrodescendentes vivem com a verdade de que seu passado, assim como seus ancestrais foram colonizados, no podcast Nexo, o historiador Rodrigo Bonciani e Lucybeth Arruda, professora de antropologia da Ufopa, contam como este tiveram seu sobrenomes trocados a força, até aqueles cujos sobrenomes, para nós, parecem refletir uma origem indígena foram feitos a partir de arredondamentos de tribos ou lugares e não de linhagens, ou descendente de escravizados.
Por motivos identitários como este, da falta de registro e documentação pelas raízes escravistas dos colonizadores que muitos brasileiros que também são imigrantes por definição, já que seus ancestrais abandonaram suas terras de origem, por força, permanentemente não podem ter parte de sua identidade. Malcom X, um dos maiores ativistas negros americanos trocou seu nome anterior “Little” para X, simbolizando a perda de identidade por conta da escravidão. Há hoje, em aguardo de apreciação pelo Senado Federal um projeto de lei que permitiria os afrodescendentes retificar seu registro civil com sobrenomes africanos, a PL 803/2011.
Com tudo isso em mente, há um abismo de comparação entre aquilo salientado da história de São Paulo no segmento anterior deste texto, com aquilo demonstrado neste último capítulo, e este se origina por um motivo, a falta de conscientização disto no acervo popular da história da cidade e do país, afinal, em uma nação com tantas descendências e origens, fica o questionamento de porque algumas historias são salvas e celebradas para o ensino da próxima geração e outras são esquecidas ou salvas somente para aqueles que correm atrás.
Museu da Imigração, um reflexo importante de São Paulo
Há aqueles que possam ter percebido a falta da menção do Museu da Imigração, onde essa pessoa se recorda de há anos, foi a esse museu, seja com os pais ou passeio escolar, ver a exposição sobre as imigrações de São Paulo. Pois bem, essa foi a experiência de Pedro Henrique Mariano da Silva, de 19 anos, morador da Mooca desde a infância, “Não sinto vontade de voltar ao museu do Imigrante, fui uma vez e a vez que eu fui, achei que foi o suficiente” aquilo que Pedro não sabia, assim como diversos paulistas, é que a instituição do Museu da Imigração passou por mudanças e restauros desde 2011 até 2014, onde o pensamento das exposições começou a agregar, de modo mais inclusivo, outras experiências imigratórias passadas pela cidade de São Paulo.
Sobre esse pensamento a professora Silvia acrescenta: “O problema desses locais é que muitas vezes acabam tendo sua divulgação dentro de círculos muito restritos de visitantes, que se sentem representados pelos acervos dessas instituições. O maior público do Museu Judaico de São Paulo é a própria comunidade judaica […] A cidade é repleta de instituições culturais de caráter étnico, mal divulgadas para o público em geral.” Isso em grande parte se dá pela origem do museu, como a Hospedaria dos Imigrantes.
Fundada em 1887 a Hospedaria dos Imigrantes tinha como missão o alojamento daqueles vindo de fora do Brasil até que estes encontrassem moradias por ofertas de trabalhos, esse projeto foi empurrado na época em grande parte pela Sociedade Promotora da Imigração, que era em grande parte constituída por aqueles vindos da indústria cafeeira, para que estes tivessem acesso à desejada mão de obra vinda de fora, por isso o espaço ficou conhecido como o ponto entre o imigrante italiano e a fazenda de café, e por que o espaço é muito falado pelos descendentes de italianos entre seus círculos internos, porém como esse é o mascote da imigração em São Paulo, acaba estourando essa bolha e a história deste é passada para aqueles de fora desse círculo, porém muitos outros ciclos de imigração acabam não sendo divulgados.
Sobre isso, Henrique Trindade, historiador e gestor do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência do Museu da Imigração, acaba salientando a mesma coisa da professora Silvia, “a questão da proximidade geográfica do Museu remete a essa ideia da imigração italiana […] se dá pela quantidade de pessoas na cidade de São Paulo que são descendentes de imigrantes italianos” porém Henrique e a gestão atual do museu entendem esse pensamento centrado no italiano e expandem em cima deste, “é claro que muita gente, que é descendente de italiano procura o museu e gosta do museu e visita o museu, mas a ideia, principalmente a partir de 2014 é trabalhar a imigração a partir da experiência humana […] na exposição de longa duração, você não vai encontrar uma sala exclusiva para somente uma comunidade, mas sim um tema e um debate que reflete a experiência de imigrar, e essa experiencia pode estar no passado, pode estar no presente, pode se referir a um grupo étnico, pode se referir a um grupo refugiado […] e é por isso que o museu sempre procura integrar suas exposições, debates, apresentações, cursos e festas, integrar as comunidades mais tradicionais que estão aqui em São Paulo desde o século XIX até aquelas recém chegadas na cidade”.
Então, a antiga Hospedaria dos Imigrantes acaba por, expandir na visão de imigração, contando com exposições que englobam outros fluxos migratórios, mais atuais, como a exposição temporária que tratava das imigrações venezuelanas, até imigração mais antigas com menos palco para algumas pessoas, como a atual exposição África em São Paulo, que ficou de novembro de 2022 até o final de maio de 2023.
Ou seja, pela limitação que o museu já tinha, no período antes de 2011 entre ser muitas vezes divulgados em grupos fechados e o estigma de que ele lidava com uma exposição singular centrada na experiência italiana, muitos, como o Pedro Henrique, acabam não sabendo dessa atualização da instituição, “pessoas de mais de 70 nacionalidade já passaram pela Hospedaria, e mais recentes a gente vê fluxos migratórias de haitianos, de pessoas provenientes dos mais variados países da África, do Afeganistão, Venezuela, enfim, São Paulo ainda é uma cidade que acolhe muita gente é uma cidade ainda escolhida por muita gente para viver, para tentar um recomeço, para tentar trabalhar, tentar estudar e é papel do museu, mostrar isso”, diz Henrique Trindade.