Após descoberta de achados históricos, IPHAN autoriza obras na estação 14 Bis-Saracura

No centro de São Paulo, a descoberta de artefatos arqueológicos paralisou as obras do metrô por um ano e meio. Objetos reafirmam a existência do Quilombo Saracura e levantam debate sobre a preservação da memória negra na cidade

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Obras de construção da linha laranja do metrô 14 Bis – Saracura. Foto tirada por Amanda Paganini.

Por Amanda Paganini, Jullia Gomes e Letícia Gomes

Em março de 2025, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) autorizou a retomada das obras da Estação 14 Bis-Saracura, da Linha 6-Laranja do metrô de São Paulo. As escavações estavam paralisadas há cerca de um ano e meio, após a identificação de artefatos arqueológicos no bairro do Bixiga – vestígios do Quilombo Saracura. A liberação foi concedida à concessionária Linha Uni e ao governo do Estado de São Paulo, que reavaliou o andamento do projeto em fevereiro de 2025 e chegou a cogitar a não conclusão da estação, diante do impasse gerado pela necessidade de preservação dos achados.

“Quando se encontra um sítio arqueológico dessa natureza no caminho do metrô, o que o Estado faz é, imediatamente, lançar um falso problema”, afirma Rossano Lopes Bastos, 65, arqueólogo do Iphan e integrante da Rede de Arqueologia Negra. Ele explica que é nesse cenário que o movimento negro do Bixiga se articula para garantir a proteção do patrimônio e dos objetos encontrados no local, como forma de afirmação da ancestralidade negra. “É nesse contexto que sou contactado pelo gabinete da deputada Érika Hilton, para, como arqueólogo, auxiliar o movimento negro de São Paulo”, relata Rossano, ao explicar seu papel nas ações voltadas à preservação do sítio arqueológico Quilombo Saracura.

Até o início de 2025, a construção da estação apresentava um avanço de 10%, o que impactou o cronograma previsto para a Linha 6-Laranja. A nova previsão de entrega da Estação 14 Bis foi adiada para 2029, representando um atraso de cerca de quatro anos em relação à estimativa inicial. Os efeitos foram sentidos tanto na mobilidade de moradores da região quanto nas atividades de comerciantes locais. “Foi muito impactante para a minha profissão, minha renda caiu em torno de 70%, então estou trabalhando sem conseguir pagar as contas”, diz Manoel Pereira Alves Filho, 62, jornaleiro da região do Bixiga.

Comércio fechado em local isolado na região das obras da estação 14 Bis – Saracura. Foto tirada por Amanda Paganini.

Por outro lado, a paralisação permitiu que arqueólogos catalogassem mais de 4 mil artefatos no sítio Saracura, incluindo objetos de uso cotidiano, adornos e itens associados a práticas religiosas. Esses achados reforçam a relevância histórica do local como um espaço de resistência da população negra e levantam um debate importante sobre as nuances entre o progresso urbano e a preservação da memória.

“Mobilidade é muito importante. Estou sempre pegando corridas de aplicativo justamente porque não tenho outra opção. Mas, para mim, a preservação é mais importante do que a mobilidade”, diz Rachel D’Amico, 39, moradora do Bixiga e professora de Sociologia. Para ela, a estação não deveria ter sido construída no local, dada a presença dos artefatos do Quilombo Saracura e os riscos geográficos da região, que costuma alagar com frequência. A existência de um rio submerso no entorno, segundo a professora, ajuda a explicar essa vulnerabilidade. O Córrego Saracura cruzava uma das áreas baixas e alagadiças, onde as elites não queriam viver e, por isso, virou abrigo para populações marginalizadas. A presença do córrego impulsionou a formação de um quilombo urbano, conhecido como Quilombo Saracura.

Em 1850, o Brasil institui a lei de terras que vai inviabilizar a população negra a ocupar terrenos a partir do momento da abolição. Esse momento da legislação brasileira para Rossano é o que torna os achados ainda mais significativos sob a ótica arqueológica. Segundo ele, a complexidade desse sítio demanda profissionais com formação voltada para os estudos negros, que compreendam a diáspora africana, os significados de um terreiro e a dinâmica dos quilombos. “Não dá para tratar esse sítio com uma arqueologia formada apenas nas universidades da branquitude, pautada em visões eurocêntricas”, afirma. 

“O patrimônio cultural, enquanto tal, é objeto de confirmação de territórios, de sofisticação de mando e de disputa de poder”, afirma Rossano. Ele explica que o que está sendo revelado ali corresponde a uma espécie de “Pequena África”, um assentamento que envolve terreiros, práticas religiosas e formas de organização social da população negra. A descoberta arqueológica no local onde será construída a futura estação da Linha 6-Laranja não apenas concretiza essa história, como também ressalta a importância de reconhecer e valorizar a presença negra no bairro.

Cerâmicas encontradas no monitoramento arqueológico das obras da Linha 6-Laranja (Divulgação/A Lasca Arqueologia)

Rachel comenta também que após levar seus alunos para visitar o local, assim que a Praça 14 Bis foi reinaugurada, percebeu o quanto a história do bairro ainda é desconhecida por muitos jovens. “Eles nem sabiam que o Bixiga era um bairro negro, por terem essa ideia de que o Bixiga é um bairro italiano”, relata. 

Segundo o IBGE, cerca de 43,5% da população da cidade de São Paulo é composta por pessoas negras, refletindo a forte presença e contribuição histórica dessa população na formação da capital. No bairro do Bixiga (oficialmente parte da Bela Vista), essa presença é ainda mais significativa. Atualmente, 21,6% dos moradores se identificam como negros, reforçando uma continuidade histórica que remonta ao período colonial. 

Reduzir o Bixiga a um bairro de raízes italianas é ignorar a história negra que ajudou a moldar suas bases. Registros mostram que desde o sėculo XVII o bairro era uma espécie de esconderijo e passagem de negros que se abrigavam nas matas densas, baixadas e ladeiras, no período da escravidão para ganharem a liberdade.

Rossano Lopes explica: “O bairro do Bixiga não é um bairro italiano assim como muitos querem fazer ser. Bixiga hoje é um bairro plural, onde a presença negra tentou ser sufocada, mas ela está emergindo com grande significado do sítio arqueológico Saracura.”

Em um país onde a escravidão durou mais de 388 anos, a formação de comunidades de resistência era, e ainda é, de extrema importância. Práticas como o samba, a capoeira e as religiões de matriz africana encontraram ali um espaço, mesmo que constantemente sob ameaça de repressão e remoção.

Saracura Vai-Vai, o movimento

Após a descoberta dos artefatos ligados ao quilombo, formou-se um movimento, em junho de 2022, para garantir que esses itens fossem resgatados e estudados com o objetivo de devolver à população negra uma parte de sua história, até então,  apagada. O coletivo Mobiliza Saracura Vai-Vai é composto por pessoas de diversas áreas e formações.

Rafael Funari, 34, advogado e membro do coletivo, fala sobre como a chegada do metrô influencia na expulsão da população negra: “O bairro do Bixiga, que hoje é majoritariamente negro, é constantemente alvo de expulsão, como por exemplo o metrô. A chegada da estação vai fazer com que o preço da terra suba, e isso vai expulsar a população negra. Então, o movimento Vai-Vai vem para dar luz a essa memória que emerge com o sítio.”

No entanto, após a paralisação das obras para que os artefatos fossem analisados, o Governo Estadual declarou publicamente que, caso o sítio arqueológico impedisse o avanço da construção, a estação poderia não sair do papel. A declaração gerou revolta e alimentou uma narrativa de que os defensores da memória estariam “atrasando o progresso da região”, segundo a fala de uma moradora do bairro, Eliane Carvalhal, 56, administradora de empresas.

Obra de estação 14-Bis Saracura. Foto tirada por Amanda Paganini.

Há narrativas que colocam a preservação da memória em oposição ao progresso, pois entende-se que ambos seriam incompatíveis. Esse tipo de argumentação pode contribuir para a redução do apoio a iniciativas de valorização histórica.

“É muito fácil eles [o Estado] oporem memória e progresso quando a memória é da população negra periférica, que não tem, para eles, valor. Eles usam o progresso para destruir a memória que não é conveniente para a cidade”, diz Rafael Funari.

O apagamento da história negra no Brasil não é uma questão recente. Um episódio marcante ocorreu em 1891, quando o então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, ordenou a queima dos registros de cartório relacionados à escravidão. A medida eliminou documentos essenciais para o entendimento das origens da população negra brasileira.

Outro exemplo de apagamento foi no século XIX, quando o Cais do Valongo, localizado na região portuária do Rio de Janeiro, sendo o principal ponto de entrada de africanos escravizados no continente americano. Porém, ele foi enterrado intencionalmente no final do século XIX, durante as obras de modernização da cidade, lideradas pelo prefeito Pereira Passos, como forma de “higienizar” o centro da capital.

O reconhecimento dessa história demanda ações integradas entre o poder público e os meios de comunicação. Durante as entrevistas realizadas com moradores e comerciantes do entorno da futura Estação 14 Bis-Saracura, observou-se um padrão recorrente de desinformação ou desconhecimento em relação às causas da paralisação das obras. “Eu não tenho a certeza do motivo da paralisação, mas dizem que foi por causa de algumas coisas antigas que encontraram e por isso paralisaram as obras”, comenta Manoel Pereira Alves Filho, 62, jornaleiro da região do Bixiga. 

A possível transformação do local em museu reforça a importância de preservar a memória negra, com artefatos que evidenciam a resistência e a ancestralidade afro-brasileira. Como destaca Rossano: “A partir do momento em que há a possibilidade de transformar os artefatos em um museu que conta a história da diáspora africana no Brasil, na cidade de São Paulo, estamos ali na preservação da nossa ancestralidade.”

Foto de manifestações culturais e religiosas em frente a obra da estação 14-Bis Saracura da linha 6 laranja do metrô, 02/07/2022. site/veículo: Folha de São Paulo

“Você não ter um espaço desorganiza uma vida social e toda uma escola de samba”, afirma André Felipe, 32, diretor cultural da GRCSES Vai-Vai. A tradicional escola foi removida de sua sede histórica para a construção da estação. Segundo ele, com a mudança, os ensaios passaram a ocorrer na quadra da escola Uirapuru da Mooca.

A luta em defesa do quilombo Saracura e da Vai-Vai mostra que preservar a história das populações negras e periféricas não é um obstáculo, mas sim uma condição essencial para um progresso verdadeiramente justo, inclusivo e democrático.

Quem tem direito à memória e à cidade?

O direito à cidade no Brasil é marcado por profundas desigualdades. Ainda de acordo com o IBGE, 86,4% da população brasileira vive em áreas urbanas, sendo que mais de 20 milhões de pessoas residem em favelas, muitas vezes sem acesso a serviços básicos como saneamento, transporte e educação de qualidade. Além disso, a gentrificação e as remoções forçadas agravam ainda mais esse cenário: segundo a Campanha Despejo Zero, cerca de 1,5 milhão de brasileiros foram despejados ou estão sob ameaça, em processos que priorizam o lucro da especulação imobiliária, ignorando os direitos e a história das comunidades afetadas.

A criação de um museu para preservar os artefatos históricos encontrados no quilombo Saracura, em São Paulo, é essencial para valorizar as memórias das comunidades negras, periféricas e tradicionais. Adriana Terra, 40, jornalista e professora, também faz parte do coletivo e afirma que o objetivo é mais do que guardar objetos, trata-se de manter viva a história e o patrimônio dessas populações, “Esse museu tem a tarefa de pensar sobre essa memória, e pensar nessa linha da memória viva; da história viva; no patrimônio vivo”, diz ela. 

Xícara em faiança fina com esmalte amarelo encontrada no sítio Saracura/Vai-Vai.
Foto: A Lasca Arqueologia/Relatório Parcial da Estação 14 Bis-Saracura/Reprodução

Dados da revista Parlamento e Sociedade mostram que cerca de 60% da população das periferias paulistanas é composta por negros e pardos, grupos que muitas vezes enfrentam o apagamento de suas histórias no processo de urbanização. O museu seria então uma forma concreta de resistir ao apagamento promovido pela gentrificação e pelo avanço urbano. 

Adriana Terra reforça a importância da história de São Paulo contemplar a trajetória da população negra. “Por estar em um território historicamente negro, o sítio arqueológico pertence à história e à memória dessa população, cuja presença ainda é pouco representada nas narrativas oficiais sobre a cidade”, afirma. Segundo ela, a criação de museus ou espaços públicos que celebrem essa história representa um ato de resistência e reconhecimento, assegurando que o progresso urbano não apague a identidade e a memória das comunidades que ajudaram a construir São Paulo.

A relação entre direito à cidade, memória coletiva e justiça histórica no Brasil é marcada por contrastes fortes. O desenvolvimento urbano, muitas vezes impulsionado pela especulação imobiliária e grandes projetos, acaba silenciando as vozes e apagando as histórias de comunidades vulneráveis, principalmente das populações negras e periféricas. 

A falta de informações de qualidade faz com que as pessoas não apoiem a luta pela valorização da memória. O desencontro de informações deixou os moradores e comerciantes confusos em relação ao que seria feito com a estação, como menciona Jon Arthur da Silva, 29, dono de uma floricultura na região: “A conversa que estava acontecendo aqui era muito cruzada e isso nos deixou confusos. Disseram que o pessoal do bairro estava brigando para não ter mais estação”

Poeta Rubens Fernandes de Souza, 83, conhecido como Rubão Guerreiro da Nação, quilombola morador do Bixiga (SP) — Foto: Thiago Fernandes/Reprodução – Instagram Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai.

Adriana Terra comenta sobre o posicionamento do grupo e como ele foi distorcido por parte do Estado: “O movimento sempre apoiou a construção da estação. Nós sempre falamos que era possível ter as duas coisas. Não só é possível, mas é dever do Estado ter a obra e fazer o correto resgate para a preservação da memória. Muitas vezes são colocadas como incompatíveis, a memória e o progresso, mas elas não são incompatíveis.”

Ignorar a memória dessas comunidades ao buscar o desenvolvimento das áreas urbanas não é só um erro, mas uma injustiça com a identidade nacional. Uma cidade que avança sem lembrar seu passado perde sua essência. Por outro lado, a cidade que preserva suas raízes e reconhece sua história é mais inclusiva, justa e fomenta o pertencimento, garantindo melhorias das condições de vida para todas as pessoas.