
Créditos: Erick Moura
Cerca de 180 famílias foram despejadas da Ocupação Terra Prometida, no bairro Santos Dumont, em Guarulhos, durante uma reintegração de posse realizada no dia 11 de março de 2025. A operação foi marcada por violência e desamparo: um morador foi baleado com uma bala de borracha à queima-roupa por um policial militar e diversas casas foram demolidas com todos os pertences dentro, sem que houvesse qualquer suporte ou alternativa de moradia oferecida pelo poder público às famílias.
Segundo os moradores, a desocupação aconteceu de forma desordenada. Policiais militares chegaram primeiro, seguidos pelas retroescavadeiras e só depois pelos caminhões que deveriam auxiliar na mudança. Essa inversão gerou caos: máquinas iniciaram a derrubada das casas, inclusive de onde os moradores ainda não haviam retirado móveis e objetos pessoais. “Derrubaram casa com tudo dentro”, relata Andréia Pereira Silva, 49 anos, costureira e líder da ocupação, descrevendo o desespero de ver os pertences soterrados. Um dos vizinhos teve a casa destruída enquanto corria para pedir aos funcionários da Prefeitura presentes que parassem o trator, mas não foi atendido a tempo.
No meio da confusão, um morador tentou bloquear a passagem de um trator para proteger seus bens e foi atingido por uma bala de borracha disparada por um policial a curta distância, a imagem do morador baleado viralizou nas redes sociais. O impacto o derrubou imediatamente. “A gente levou um susto muito grande, porque parecia um fuzil”, conta Andréia, sobre o disparo que causou pânico. Enquanto gritos e correria tomavam conta da parte da frente da ocupação, nos fundos as máquinas continuavam a derrubar casas com tudo dentro. “Foi um caos, uma coisa horrível, um filme de terror”, descreve Andreia sobre os momentos de violência. Sem a presença da equipe de zoonoses nem os animais foram poupados, cachorros acabaram atropelados pelas máquinas. “Passaram por cima de cachorro com filhotinho… coisa horrível”, lembra a líder comunitária.

Créditos: Erick Moura
A Ocupação Terra Prometida foi estabelecida há sete anos em um terreno de propriedade contestada. Partes da área estão em faixa de domínio do Rodoanel e sob linhas de torre de energia elétrica (terrenos públicos ou de concessionárias) enquanto outra parte é reclamada por um proprietário privado. Os ocupantes alegam que o suposto dono, nunca apresentou documentação convincente de posse sobre toda a extensão ocupada, mas ainda assim obteve na Justiça a reintegração. “No processo, ele tratou as quatro áreas como se fossem todas dele”, explica Andréia, que lamenta a rejeição da juíza do caso de um pedido de perícia para esclarecer a divisão de terras.
Diante da ordem de despejo, a vereadora Fernanda Curti (PT), 30, que acompanhou a luta por moradia no local, conta que tentou abrir diálogo com a Prefeitura de Guarulhos desde a gestão passada, mas não obteve sucesso. “Não tivemos êxito nenhum na conversa com a gestão do Guti (prefeito anterior do partido PSD)”, diz Fernanda. Com a posse do novo prefeito, Lucas Sanches (PL), as negociações continuaram, mas as ações concretas só vieram em cima da hora. Um dia antes da reintegração, já no fim da tarde, a administração municipal solicitou judicialmente um prazo extra de 15 dias para as famílias, tentativa considerada tardia pela vereadora. “Como você pede prazo de 15 dias um dia antes da reintegração, no final da tarde? Qual a chance de isso dar certo?” questiona Fernanda. Nesse mesmo período, nenhuma alternativa habitacional foi oferecida às 180 famílias. De acordo com a vereadora, a única “solução” apresentada pela Prefeitura foi acolher pessoas em abrigos emergenciais, o que ela critica por separar núcleos familiares (homens em um abrigo, mulheres e crianças em outro). Para Fernanda, cabia ao poder público garantir uma alternativa digna às famílias removidas, o que não aconteceu: “A prefeitura agiu muito tarde e deixou de agir na garantia dos direitos fundamentais, no direito à moradia dessas famílias”, lamenta.
Fernanda explica que o caso da Terra Prometida reflete um cenário habitacional crítico em Guarulhos. “É uma tragédia”, define a vereadora sobre a falta de políticas de moradia. Ela cita que milhares de famílias vivem em loteamentos irregulares ou áreas de risco, num município que “passou 8 anos sem um programa habitacional sério”. Programas federais como o Minha Casa Minha Vida ficaram paralisados nos últimos anos, piorando o déficit habitacional local. A falta de dados oficiais atualizados sobre a situação habitacional do município dificulta a elaboração de políticas públicas eficazes e a análise de pesquisas sociais.
Para Fernanda, ocupações como a Terra Prometida deveriam ser tratadas como questão de interesse social coletivo, e não apenas conflitos privados de terra. “Ali é área privada, mas tem 180 famílias; desculpa, isso não é uma discussão privada, é de interesse público, a Câmara e a Prefeitura precisam atuar”, defende Fernanda. Ela argumenta que, em casos assim, o Município poderia intervir juridicamente e até utilizar instrumentos legais (como declarar a área Zona Especial de Interesse Social) para proteger as moradias populares. A própria Fernanda propôs um projeto de lei na Câmara Municipal para reconhecer a Terra Prometida como área de interesse social e dessa forma devolver a terra às famílias. Segundo ela, o proprietário pretende construir um supermercado no local, isso mostra como interesses privados acabam prevalecendo sobre o direito à moradia de famílias de baixa renda.
Antes da reintegração, os moradores organizaram manifestações na tentativa de serem ouvidos pela prefeitura. Em uma das ações, eles ficaram em vigília em frente à sede da Prefeitura de Guarulhos, levando colchões e poucos pertences, mas nenhum representante apareceu para conversar com eles. Diante do silêncio oficial, os moradores decidiram protestar na própria comunidade, buscando chamar a atenção da mídia. A manifestação pacífica foi recebida com força policial. “Eles invadiram a comunidade e começaram a jogar bombas no nosso quintal”, relata Andréia, referindo-se a bombas de efeito moral lançadas pela Polícia Militar para dispersar o ato. Andréia conta que as crianças passaram mal devido a ação da polícia. “Teve criança que tomou tiro de bala de borracha no pescoço”, denuncia a vereadora Fernanda Curti. Ela criticou duramente a conduta da PM: “A manifestação dos moradores era legítima e pacífica, e a polícia resolveu lidar da pior forma possível, desumanizando as pessoas e tratando com violência”. Curti afirma que não havia barricadas bloqueando vias nem resistência dos moradores naquele momento, mesmo assim a tropa de choque avançou com violência. Para a vereadora, o ocorrido na Terra Prometida foi “uma violação total dos direitos humanos”.
Para Andréia Silva, líder comunitária, a maior dor é ver o sofrimento das famílias e a falta de amparo. “A prefeitura nunca entrou para ajudar, nunca fomos ouvidos”, desabafa, lembrando que por anos os moradores imploraram por uma solução habitacional e apoio jurídico que nunca vieram. Após o despejo, o grupo foi deixado à própria sorte. “Várias famílias estão em casa de parentes”, conta Andreia. Ela destaca casos dramáticos, como o de uma mãe com sete filhos que não consegue alugar uma casa. Andréia conta que entregou à Defensoria Pública uma lista com os nomes dos moradores, na esperança de incluir as famílias em um programa de auxílio-moradia, mas até agora não houve resposta.
A violência da reintegração também se revelou na maneira como a ação foi conduzida, sem qualquer cuidado com a proteção das famílias. Casas foram derrubadas com pertences dentro, mesmo com moradores pedindo tempo para retirar seus objetos. Um dos casos envolveu um casal com um bebê de apenas um mês, que não conseguiu salvar o berço, as roupas da criança nem sequer as latas de leite. “Depois a gente só via as coisas nos escombros. O pai pegando as latas que conseguiu, as que não estavam amassadas”, relatou a vereadora Fernanda Curti.
Segundo a vereadora, apesar do despacho judicial prever que fossem garantidas condições mínimas de dignidade às famílias removidas, isso não foi cumprido. “No último despacho da juíza, ela coloca lá no final que as condições de dignidade humana sejam garantidas. Não garantiu. E aí, o que acontece agora?”, questiona.
Até o fechamento desta matéria, não houve retorno por parte da Secretaria Municipal de Habitação de Guarulhos, da Secretaria de Segurança Pública nem da Subsecretaria de Comunicação da Prefeitura, apesar dos contatos realizados pela reportagem.