Por Allan Batista, Ana Carolina Maciel, Diego Orcesi, Flávia Fernandes e Gabriel Vieira
O distrito de Santa Cecília tem se destacado pelo grande número de moradores membros da comunidade LGBTQIAP+ nos últimos tempos. Localizado no coração da cidade de São Paulo, é conhecido por sua pluralidade cultural, social e, recentemente, pelo estereótipo de uma comunidade gay com características específicas, que vão da presença de chão de taco em seus apartamentos ao grande número de gatos e plantas, em especial samambaias, apelidados de “gays Santa Cecília”. A migração de pessoas LGBTQIAP+ para a região é um dos fatores que levou à sua consolidação como um lugar acolhedor para lésbicas, gays, pessoas transexuais e queers.
Rótulos e realidades: a vida da comunidade LGBTQIAP+ de Santa Cecília
O apelido “gay Santa Cecília” ganhou popularidade especialmente por meio dos memes na internet. Títulos como “gay chão de taco” solidificaram um estereótipo do bairro como um espaço predominantemente habitado e frequentado por homens gays com um ritmo de vida muito semelhante. Essa representação, embora caricatural a ponto de se tornar fantasia de Carnaval – conforme viral protagonizado por Flávio do Quinto, que movimentou a internet durante o carnaval de 2020. Flávio publicou uma foto em que usava peças de chão de taco, samambaias e uma placa de rua com o nome do distrito de Santa Cecília em evidência. Marco Antônio Bueno Filho, homem cisgênero gay de 46 anos e professor da UFABC, afirma que se enquadra no estereótipo popularizado pelo meme sobre a região: “Minha casa tem o chão de taco, tem as plantas. Mas eu tenho que me defender disso, porque antes de ficar na moda esse estereótipo, eu já tinha tudo isso em 2005, quando morava no Copan. Eu antecipei o movimento”, brinca.
A Gay Paulista fo Chão de Taco e Samambaias #CarnavalDoquinto pic.twitter.com/8tX6cbFfIJ
— Doquinto (@doquinto) February 16, 2020
Entretanto, é importante pontuar que, como todo estereótipo, o de “Gay Santa Cecília” pode acabar generalizando um grupo plural de pessoas sob uma única ideia. Marco Antonio concorda e afirma: “Saiu até a capa da VEJA São Paulo, se não me engano, dos Santa Ceciliers. Mas como todo estereótipo, eu acho que ele sempre tem o perigo de generalizar demais. Toda a generalização é perigosa”.
Moradores e frequentadores de Santa Cecília compartilham experiências parecidas, como a sensação de pertencimento e segurança. Lucas Della Coletta, homem cisgênero gay de 25 anos e designer de moda, mora há dois anos próximo à estação de metrô da linha vermelha Santa Cecília. Um dos motivos que o levou a se mudar para o distrito, enquanto procurava por apartamentos, foi a ideia de que ali é considerado um ambiente menos agressivo para membros da comunidade morarem. “Lógico que às vezes acontece uma situação ou outra em que você se sente desconfortável, mas, no geral, é um lugar em que eu me sinto acolhido”, afirma o designer.
Da mesma maneira, Madeleine Lima, mulher cisgênero lésbica de 29 anos e psicanalista, diz que sente a questão do acolhimento na região: “As pessoas vêm para São Paulo, especificamente à Santa Cecília, para habitar o centro. Aparentemente, há boatos de que ele é mais acolhedor, de fato, para o público LGBTQIA+”. Essa comunidade de apoio, muitas vezes, ultrapassa várias das questões identitárias: Sobre essa comunidade de apoio, Marco Antônio conta: “Me lembro, em 2018, época das eleições, quando surgiram vários movimentos de campanha. Apareciam pessoas, e não estou falando só da comunidade LGBTQIAP+, que chegavam na gente e falavam: ‘Eu sou vizinho aqui da rua de cima, que legal que vocês estão aqui se organizando, posso participar também?’. Existem diferenças, mas eu acho que tem a possibilidade de um encontro”.
Marco também comenta sobre a violência e o preconceito: “Eu acho que muito se avançou nos últimos anos, mas a gente precisa também olhar para frente e buscar coisas novas”. O professor se recorda de ouvir comentários depreciativos que recebia quando caminhava pelas ruas de seu antigo bairro, localizado na Zona Norte, quando ainda era um adolescente gay nos anos 1990 e 2000. “Ainda tem uma parcela importante de pessoas que são mortas todos os dias, que a gente precisa avançar, mas eu acho que algumas coisas caminharam”. Ele conta que vê esta mudança ocorrer atualmente: “Eu ando com muita tranquilidade de mãos dadas com meu namorado por aqui e nunca fui importunado”.
Entretanto, o morador deixa claro que ainda há muito a se modificar: compartilhou ter presenciado uma situação de violência no distrito em que a vítima era uma mulher transexual. “Eu já presenciei a agressão a uma moça trans em situação de rua que morava aqui. As pessoas a ajudavam como podiam”, conta. “Um dia eu passei por ela e ela estava jogada no chão, agredida, machucada, com a cara roxa. Depois eu encontrei ela mais uma vez, já na região da Paulista, e ela veio falar comigo. Comentou que, por conta da agressão que sofreu, ela teve que se retirar aqui da região e nunca mais voltou. Não sei nem se está viva”, complementa o professor.
O comentário de Marco leva a uma importante reflexão: todas as populações dentro da sigla LGBTQIAP+ são contempladas pela segurança e hospitalidade de um bairro conhecido por abraçar pessoas independentemente de identidade de gênero e orientação sexual ou existem grupos capazes de acessar seus direitos à cidade em detrimento de outros?
Panorama da violência LGBTQIAP+ no Brasil
Apesar do núcleo central paulistano ser considerado acolhedor, a experiência não se aplica ao resto do país e, mesmo nas metrópoles, alguns grupos sofrem mais violência que outros. Em 2022, o Observatório de Mortes e Violências LGBT do Brasil divulgou um dossiê com o número de mortos e vítimas de violência de acordo com cada estado brasileiro. O documento é resultado de uma ação conjunta dos grupos Acontece – Arte e Política LGBTQ, pelo Grupo Gay da Bahia, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais e Intersexo). Os dados foram coletados a partir de arquivos de notícias em jornais, portais eletrônicos e redes sociais, o que nos indica haver uma subnotificação de números, já que se depende da mídia e os meios de comunicação para identificar a identidade de gênero e orientação sexual das vítimas, além da ausência de dados governamentais que limitam a metodologia da pesquisa.
Segundo a pesquisa, em 2022, uma pessoa membro da comunidade LGBTQIAP+ foi morta no país a cada 32 horas. No total, foram 273 mortes, sendo: 159 de travestis e mulheres transexuais (58,24%), 96 de gays (35,16%), oito de lésbicas (2,93%), oito de homens transexuais (2,93%), uma de pessoa não-binária (0,37%) e uma de pessoa de outros segmentos (0,37%). Entre as vítimas, 91 eram pretas ou pardas e todas tinham entre entre 20 e 29 anos; 74 delas foram assassinadas por arma de fogo; 48 por esfaqueamento e 130 mortes aconteceram durante a noite. Entre essas mortes também estão 18 suicídios cometidos por pessoas transexuais. Os registros também indicam que 118 mortes aconteceram no Nordeste e 71, no Sudeste. Os estados que mais matam LGBT, segundo o levantamento, são o Ceará, com 34 mortes e São Paulo, com 28.
Até abril de 2023, um novo levantamento já havia registrado 80 mortes, sendo a população trans e travesti 62,50% deste número. Portanto, não é mera coincidência que a única violência testemunhada por Marco Antônio tenha sido contra uma travesti em situação de rua, o que levanta outra questão sobre um grupo marginalizado que habita na Santa Cecília e é invisibilizado. O psicanalista chama este grupo de “população dentro de uma população” e pontua que, mesmo já tendo presenciado agressão contra uma pessoa deste grupo (trans e travestis em situação de rua), o bairro seria menos violento que outros: “Muitas delas vêm para cá porque ainda encontram algum acolhimento, porque em outras regiões elas apanham. Aqui elas se sentem um pouco mais seguras”.
Para, progressivamente, amenizar questões de segurança pública e vulnerabilidade social direcionadas ao distrito como um todo, mas especialmente para a comunidade LGBTQIAP+, Madeleine reconhece a necessidade de políticas públicas na região: “Seria interessante mais movimentos políticos para a galera pensar nessa questão. Existem movimentos, eu sou filiada ao PSOL, então eu participava do núcleo Marielle Franco”, conta. “Tinha que ter mais, eu acho que ajuda nessa questão de entender quais são as outras necessidades que vão surgindo”.
Os dados do Mapa da Desigualdade revelaram em 2022 que Santa Cecília é o bairro com maior número de pessoas em situação de rua da capital paulista. São 5.006 pessoas nesta condição, um número 5x maior que o distrito Iguatemi, por exemplo. Apesar de não existirem dados mais recentes, até 2021, segundo o Censo da População em Situação de Rua levantado pela Prefeitura de São Paulo, são 31,9 mil pessoas nestas condições, sendo 506 mulheres trans, travestis e não binários, somando 3% deste dado.
História e gentrificação de Santa Cecília
A história do distrito de Santa Cecília começa em 1860 com a construção de um templo em homenagem à Santa Cecília, padroeira dos músicos. Antes de se tornar formalmente um distrito, a região se desenvolveu com o loteamento de terras, incluindo a “Chácara das Palmeiras”, adquirida por Francisco Aguiar de Barros, evento crucial para o traçado das ruas da área.
Com o passar do tempo, o bairro viu o crescimento da cidade e a construção de marcos importantes, como a Santa Casa de Misericórdia, hoje um dos principais hospitais da cidade, e uma instituição de ensino em Medicina. Apesar de predominantemente residencial, Santa Cecília também apresenta uma variedade comercial, sobretudo com uma diversidade de bares e restaurantes. Além disso, é atravessado por importantes vias, como a Avenida Angélica e o Elevado João Goulart, o famoso Minhocão, que durante a semana apresenta intenso tráfego diário. O viaduto, que é fechado diariamente a partir das 20h e aos fins de semana e feriados para o exercício de atividades físicas, é conhecido por ser uma opção de lazer para a população da cidade de São Paulo. Em especial pela comunidade LGBTQIAP+, uma vez que é o público majoritário entre os moradores da região.
O distrito sofreu e ainda hoje sofre um processo intenso de gentrificação, que transforma regiões que um dia foram desvalorizadas em regiões super valorizadas. O que marca esse fenômeno é a expulsão de moradores mais pobres e a construção de edificações que mudam o cenário do lugar Por esse motivo, atualmente, o bairro sofre com problemas como elitização de seus espaços e grande desigualdade social.
Santa Cecília se tornou um dos distritos mais inclusivos da cidade de São Paulo para a comunidade LGBTQIAP+. Este desenvolvimento é atribuído à presença de bares, baladas e outros estabelecimentos voltados à comunidade, além de eventos culturais que celebram a diversidade e a inclusão. Alguns exemplos de lugares com foco nessa população são o bar Das, voltado a mulheres lésbicas, e a sauna Wild Thermas Club, voltada a homens gays.