Redigido por: Ana Carolina Santana, Clara Giamellaro, Diogo Costa, Marco Lima e Rebeca Farias
Nos últimos anos, o governo do estado de São Paulo e a prefeitura da capital têm cogitado privatizar diversos equipamentos culturais, incluindo as fábricas e Casas de cultura. A justificativa para essa medida é a redução de custos e a melhoria na gestão desses espaços, que, segundo a administração da secretaria da Cultura, têm gerado prejuízos aos cofres públicos. As fábricas e Casas de cultura são importantes equipamentos culturais mantidos pelo estado. Elas oferecem à população acesso gratuito a diversas atividades, como cursos, oficinas, exposições e espetáculos. Além disso, esses espaços costumam abrigar manifestações culturais locais, contribuindo para o fomento e o fortalecimento das comunidades.
A proposta de privatização do governador Tarcísio de Freitas, eleito em 2022, sobre esse local tem gerado polêmica e descontentamento entre artistas, produtores culturais e membros da sociedade civil, que temem pela perda de espaços de acesso à cultura e à arte. A privatização pode acabar concentrando o acesso à cultura em um número limitado de empresas, favorecendo a lógica do lucro em detrimento da valorização da cultura e da democratização do acesso. Há o risco ainda de perda da diversidade cultural e da identidade regional, uma vez que as empresas privadas tendem a privilegiar as expressões culturais de maior apelo comercial, o que pode tornar os espaços culturais mais elitizados e menos acessíveis à população de baixa renda, que muitas vezes depende desses espaços para ter acesso à cultura.
O prefeito da cidade de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), também afirmou que a prefeitura tem planos de privatizar as Casas de Cultura, o equivalente às fábricas, mas sob administração municipal. A declaração foi feita durante uma reunião com empresários na Associação Comercial de São Paulo, em 2021. De acordo com Nunes, a ideia é que as Casas de Cultura sejam administradas pela iniciativa privada, com o objetivo de melhorar a gestão e a manutenção desses espaços culturais. Ainda não há detalhes sobre como seria feita essa privatização e quais seriam os critérios para a seleção das empresas responsáveis pela administração.
Movimentos culturais argumentam que a privatização desses espaços pode prejudicar o acesso da população às atividades culturais e artísticas, além de diminuir a diversidade cultural e a autonomia dos artistas em relação às políticas culturais. Do outro lado, a gestão municipal argumenta que a medida pode ajudar a reduzir os custos da prefeitura e a aumentar a eficiência na gestão dos espaços culturais. A mobilização da classe artística contra a privatização tem sido intensa. Diversas manifestações, protestos e ocupações foram realizados por artistas e trabalhadores da cultura, em defesa da manutenção e fortalecimento desses espaços públicos. Além da preocupação de que a iniciativa privada busque lucro em detrimento da qualidade artística e cultural oferecida.
O programa Fábricas de Cultura é uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo que começou em 2013 e, atualmente, conta com seis unidades, todas localizadas em regiões periféricas da capital paulista e nas cidades de Diadema e São Bernardo do Campo. Segundo dados divulgados pelo Governo do Estado, as Fábricas de Cultura atendem cerca de 50 mil pessoas por mês, entre crianças, jovens e adultos. Além disso, as unidades são responsáveis por formar novos talentos e estimular a produção cultural nas regiões onde estão inseridas, contribuindo para o desenvolvimento artístico e social dessas comunidades.
Um pouco de história
O Parque do Belém foi batizado também de Parque Manoel Pitta, nome dado em homenagem ao jornalista, escritor e historiador Manoel Pitta, que foi um dos defensores da preservação da memória e da história do parque. É uma área verde de mais de 0,5 km², segundo informações do site da Prefeitura de São Paulo. Localizada na região leste da cidade de São Paulo, sua história começa em meados da década de 1970, quando a prefeitura de São Paulo adquiriu uma área de cerca de 400 mil metros quadrados para a construção de um parque público. As obras de construção do parque começaram em 1977 e foram concluídas em 1981. O parque recebeu o nome de “Parque Linear do Belém” e foi inaugurado em 1982. Dentro desse parque, a prefeitura construiu um prédio para uma possível fábrica no futuro, já que o bairro do Belém se tornava cada vez mais industrial.
Inicialmente, o prédio se tornou a fábrica de tecidos pertencente à empresa Companhia de Tecidos Santista, empresa brasileira fundada em 1929 na cidade de Santos, no litoral de São Paulo. Inicialmente, era uma fábrica de tecidos de algodão e com o passar dos anos expandiu seus negócios para outros segmentos. Quando precisou de um prédio maior, saiu de Santos direto para o distrito do Belém. A empresa foi uma das principais indústrias têxteis do Brasil durante grande parte do século 20, tendo muita importância para a economia do país. Com o passar do tempo, a fábrica foi perdendo força e acabou falindo na década de 1990.
Em 1992, o governo estadual de São Paulo adquiriu a antiga fábrica de tecidos falida na região, e a transformou na unidade da Febem (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao adolescente, mas anteriormente era chamado de Fundação Estadual para o Bem estar do Menor) no Belém. Inicialmente, a instituição tinha como propósito fornecer assistência social, educacional e profissionalizante para jovens em situação de vulnerabilidade. Mas, ao longo do tempo, o local ficou conhecido pelos casos de maus-tratos e violência contra os internos. Ainda em 1992, o governador Luiz Antônio Fleury Filho (partido PMDB) criou a “Operação Internação” para combater a violência nas unidades da Febem. A fundação chegou a ter mais de 70 unidades em todo o estado de São Paulo, com capacidade para atender cerca de 12 mil jovens vulneráveis. Relatórios da época indicavam que a Febem do Belém chegou a abrigar mais de 400 jovens em situação de vulnerabilidade social.
A operação de Fleury foi um fracasso e durante os anos 1990, o espaço no distrito do Belém foi marcado por polêmicas envolvendo violência, rebeliões, superlotação e más condições de tratamento. Em abril 1992, uma rebelião na unidade resultou na morte de dois adolescentes e deixou 43 pessoas feridas. A tragédia levou à instauração de uma CPI estadual (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a situação da Febem. No ano seguinte, outra rebelião na mesma unidade resultou em incêndios, deixando dezenas de feridos e causando diversos danos à unidade. Em 1996, mais uma rebelião aconteceu, desta vez deixando nove funcionários feridos. Nesse mesmo ano, durante uma vistoria na unidade do Belém, uma comissão de deputados e membros do Ministério Público constatou más condições de higiene, alimentação e saúde dos internos.
Ao longo do tempo, a situação se agravou, cada vez com mais denúncias de violência e maus-tratos por parte dos funcionários, superlotação das unidades e falta de suporte psicológico e social aos internos. Em 1998, a Febem passou por uma reforma organizacional significativa com a criação de um Conselho Administrativo e a descentralização das unidades para os municípios. Apesar das mudanças, a situação na Febem do Belém continuou a gerar controvérsias. Em 2001, uma nova rebelião na unidade deixou seis funcionários feridos e resultou em uma fuga em massa. No ano seguinte, uma denúncia de abuso sexual por parte de um funcionário desencadeou uma investigação interna na unidade. No fim de 2002, a fábrica foi fechada pelo estado, visto os recentes ocorridos. Após a desativação da FEBEM, o prédio ficou abandonado por anos até que em 2007, a Secretaria de Estado da Cultura iniciou o projeto de criação de espaços culturais em prédios públicos abandonados, dando origem à ideia da Fábrica de Cultura.
Revertendo o espaço
Após o período conturbado nos anos anteriores, a Fábrica de Cultura do Belém foi inaugurada em 2013 pelo então prefeito Fernando Haddad .O espaço ocupa uma área de mais de 10 mil metros quadrados e oferece uma ampla programação cultural gratuita para a população local e da região. O primeiro espaço cultural do gênero foi inaugurado em 2009, no bairro de Jaçanã, na zona norte da cidade de São Paulo e, a partir daí, outras unidades foram sendo inauguradas em diferentes regiões do estado. O objetivo é proporcionar um ambiente de aprendizado e lazer para a comunidade local, incentivando a cultura e a formação cultural dos jovens e crianças da região.
O espaço conta ainda com uma biblioteca; um teatro com capacidade para 236 pessoas; sala de cinema com capacidade para 50 pessoas; sala multiuso; estúdio de gravação; galeria de arte e um espaço para exposições. Desde sua inauguração, em 2013, a Fábrica de Cultura do Belém tem sido um importante centro cultural para a região, contribuindo para a formação e capacitação de jovens e adultos por meio da arte e da cultura. Foram investidos cerca de 20 milhões de reais na reforma e adaptação do prédio para sua nova função. O espaço cultural foi inaugurado com o objetivo de democratizar o acesso à cultura na região leste de São Paulo, que é uma das áreas mais carentes da cidade em termos de equipamentos culturais.
Para entender melhor a história deste espaço entrevistamos o coordenador do parque e da fábrica, José Cícero Pereira,63. Ele contou que a ideia de tomar a frente dessa empreitada surgiu em 2011 e partiu dele mesmo, quando ele ainda trabalhava como professor na região leste de São Paulo. “Na época, eu percebia que muitos jovens da região não tinham acesso à cultura e à educação de qualidade. Foi então que decidi criar um espaço que pudesse oferecer essas oportunidades”, relembra. “Foi um processo muito desafiador, porque não tínhamos recursos financeiros suficientes para administrar a Fábrica e o parque do Belém do zero. Por isso, buscamos parcerias com empresas e organizações da região, que acreditaram no nosso projeto e nos ajudaram a viabilizá-lo”.
A secretaria de cultura precisava de alguém que administrasse o espaço em tempo integral. Cícero, por ser conhecido no bairro e por tomar a frente muitas questões da comunidade, se “ofereceu” para assumir o cargo e foi aceito. Desde então, a Fábrica tem se consolidado como um importante centro cultural e educacional, oferecendo cursos de teatro, dança, música, audiovisual, artes visuais, entre outros, para jovens e crianças da região. Sobre os esforços do governo para privatizar o local, Cícero dispara: “Eu acredito que a privatização das Fábricas de Cultura seria um retrocesso para o país. Esses espaços são essenciais para a democratização da cultura e o acesso à educação, especialmente para jovens em áreas vulneráveis. Além disso, as Fábricas de Cultura têm um papel importante na promoção da transformação social.”
Um exemplo de sucesso e transformação social é o jovem ator e produtor cultural Paulo Roberto, conhecido como Paulinho Serra, que iniciou sua carreira na cultura dentro de uma das unidades das Fábricas de Cultura. Ele frequentou a Fábrica de Cultura do Jaçanã, onde participou de aulas de teatro e produção cultural. Posteriormente, se tornou um dos fundadores do grupo de teatro “Os Satyros” e hoje atua em novelas, filmes e programas de televisão. Outro exemplo é a jovem Bárbara Paes, que frequentou a Fábrica de Cultura do Capão Redondo e hoje é uma das principais artistas de hip hop da cena paulistana, participando de importantes festivais e eventos culturais. Segundo Relatório da comissão internacional sobre os futuros da educação apontam que jovens que participam de atividades culturais têm uma redução significativa nos índices de violência e criminalidade, além de um aumento na autoestima e na perspectiva de futuro. “Nossos planos para o futuro são de continuar ampliando o nosso alcance na região leste de São Paulo, levando cada vez mais cultura e educação para as pessoas. Queremos também expandir as nossas parcerias e ações, para que possamos atingir um número ainda maior de jovens e transformar ainda mais vidas através da cultura”. O artigo foi publicado em 2022
A ideia da privatização não incomoda apenas quem trabalha nas fábricas de cultura. Conversamos também com as usuárias do parque Sofia Dias Batista,65, e Maria José Soares, 66, sobre os planos do Governo do Estado para o espaço: “Acho um absurdo que o governo queira privatizar as Fábricas de Cultura. Esse espaço é um patrimônio público, criado para oferecer acesso à cultura e educação para a população da região leste de São Paulo”. A colega de Sofia, Maria completa: “Acredito que a mobilização da população seja fundamental. Devemos pressionar nossos representantes políticos para que entendam a importância das Fábricas de Cultura e resistam à privatização. Não queremos perder nossa liberdade”.
O que significa a privatização de espaços de cultura?
O processo de privatização entrega esses espaços para empresas privadas, ao invés de serem geridos pelo governo. Algumas pessoas acreditam que a privatização poderia trazer melhorias para esses locais, como a ampliação do acesso à cultura e a melhoria das instalações. João Dória, ex-prefeito e ex-governador do estado de São Paulo pelo PSDB, defendeu em 2017 a privatização das fábricas de cultura como forma de melhorar a gestão e ampliar o alcance das atividades culturais. E ele não era o único na gestão. Paulo Uebel, ex-secretário de Gestão da Prefeitura de São Paulo, também defendeu a privatização como forma de reduzir os custos e aumentar a eficiência na gestão.
Porém, muitos são os que argumentam que a privatização poderia levar a uma diminuição do acesso gratuito e à exclusão de grupos marginalizados. A principal preocupação com a privatização das fábricas de cultura é que os objetivos sociais e culturais desses espaços sejam perdidos. O economista Joseph Stiglitz em seu artigo “O preço da desigualdade de 2012”, entende: “As empresas visam o lucro, não o bem-estar da comunidade. Se uma atividade não é lucrativa, ela é cortada. A privatização pode levar a menos serviços e a preços mais altos para os usuários.” Além disso, a privatização pode levar à exclusão de grupos marginalizados, que podem não ter condições financeiras para acessar serviços privados de cultura. A falta de investimento público também pode resultar na perda de empregos para trabalhadores locais.
Em contra partida, Vanessa Cruz, 40, vigilante do local desde 2015 foi contratada por uma empresa terceirizada para cuidar do parque. Vanessa nos conta toda a história que ouviu e que presenciou nos anos em que trabalhou no espaço. “Uma vez, um grupo de crianças estava brincando perto do lago e um dos meninos acabou caindo na água. Felizmente, conseguimos agir rapidamente e resgatá-lo antes que acontecesse algo mais grave”, relata após ser questionada sobre a polêmica morte das crianças que viviam na FEBEM, nos anos 1990. “A unidade não era exceção com esse tipo de acidente, por muitos anos, foi alvo de denúncias de violência e corrupção. As mortes daquelas crianças mereciam mais atenção.”