O Circo Grajaú como trampolim social

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Será que, quando acessível, a arte é capaz de transformar o destino de jovens periféricos?

por Beatriz de Oliveira Carmo

No Circo Social Grajaú, projeto que há mais de duas décadas transforma a vida de jovens da periferia de São Paulo através da dança, percussão e artes cênicas, a resposta para essa pergunta ecoa nos palcos e nas trajetórias de seus participantes. Kamilly Araújo de Souza, hoje com 20 anos e integrante do grupo de dança Cia 7i8, iniciou sua participação no projeto sem grandes expectativas. “Quando fui chamada para participar do projeto, mudou um pouco a chave, porque não era mais um passar o tempo. Foi uma escolha minha para me esforçar naquilo, foi quando eu percebi que eu realmente queria isso para minha vida”, conta. Sua história ilustra como o acesso à arte pode romper barreiras sociais e abrir caminhos para o futuro de inúmeros jovens.

“A nossa intenção é tornar o ser humano, crianças e adolescentes, protagonistas das suas histórias”, afirma Rose Fernandez, 46, atual gestora do Circo Social Grajaú. A declaração reflete o impacto positivo da iniciativa, que nasceu com o objetivo de reduzir a evasão escolar e afastar os jovens da criminalidade, promovendo a cidadania na periferia.

Com 320 jovens matriculados e uma extensa lista de espera, o projeto é administrado pela Prefeitura de São Paulo e recebe recursos para manter suas atividades, que incluem dança, percussão e artes cênicas, bem como acrobacia, malabares e capoeira.

A diferença do Circo Social reside na autonomia dos participantes em escolher as atividades de acordo com sua disponibilidade, funcionando de forma similar a uma grade escolar. Desse modo, estudantes do turno da manhã podem participar à tarde, e vice-versa. Segundo Fernandez, o único critério de ingresso é a idade, entre 6 e 17 anos e 11 meses. À noite, o espaço é cedido para ensaios e apresentações de coletivos, permitindo a continuidade da participação de jovens maiores de 18 anos.

Apesar de sua relevância, o Circo Social Grajaú enfrenta desafios constantes, como o risco de fechamento e a falta de estrutura, que limitam o número de atendidos. A comunidade, no entanto, demonstra seu apoio através de mobilizações para garantir a continuidade do projeto, reconhecendo seu valor para o desenvolvimento dos jovens locais.

Outro obstáculo enfrentado é a burocracia. Tânia Soares, de 34 anos, psicóloga do projeto, e Claudia Serra, de 44 anos, assistente social, revelam que laudos médicos e encaminhamentos fornecidos pelo Circo frequentemente são desconsiderados por UBSs ou pelo conselho tutelar, devido à classificação do projeto como um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos.

“A falta de oportunidade, seja de emprego, moradia ou até mesmo de uma alimentação digna, é uma dura realidade. Muitas crianças vêm para cá não apenas pela arte, mas também porque aqui têm acesso a uma refeição. E com barriga vazia, a gente não consegue muita coisa”, explica Fernandez.

O Circo Social Grajaú representa para muitos a oportunidade de expandir seus horizontes. Claudia Serra compartilha que diversas crianças e adolescentes tiveram seu primeiro contato com o mar graças ao projeto, que proporciona vivências antes inatingíveis. Pequenos gestos, como celebrar um aniversário com bolo ou experimentar diferentes alimentos, marcam a vida dos participantes, conforme acrescenta Tania Soares: “Muitas crianças experimentam algumas coisas aqui pela primeira vez, como comer salada ou ter acesso à carne vermelha, o que, para muitos, era raro antes de virem para o projeto”.

Entre os inúmeros jovens que tiveram suas vidas transformadas pelo Circo Social Grajaú, destacam-se Maria Luiza Alves Shimada, Kamilly Araújo de Souza e Gabriel da Silva Santos, todos com 20 anos e atualmente membros do grupo de dança Cia 7i8. Ao lado de outros talentosos integrantes da companhia — Vitória Corsi de Oliveira, de 19 anos, Stephanie dos Santos Pereira, de 22 anos, Jennifer, de 21 anos, e Yuri Novais dos Santos, de 28 anos —, eles compartilharam suas trajetórias, evidenciando o impacto do Circo Social do Grajaú. Suas histórias ilustram de forma vívida como o acesso à arte pode romper barreiras sociais e abrir caminhos para o futuro.

Para diversos participantes, a oficina de dança dentro do projeto transcendeu a condição de passatempo, tornando-se o ponto de partida para uma carreira profissional. É o caso de Kamilly Araújo, que, inicialmente, participava das atividades sem grandes ambições, mas sua perspectiva mudou ao integrar o grupo de dança.

De sua parte, Gabriel Santos vivenciou transformação similar. Sem visão clara a propósito de seu, o jovem encontrou no jazz um caminho inesperado. Na oficina de dança, mesmo diante dos erros, ele expressava o bem-estar que sentia ali, algo que não experimentava em outras atividades.

Já Maria Luiza Alves Shimada sempre nutriu paixão pela dança, mesmo antes de ingressar no Circo Social. No entanto, foi durante grandes apresentações que ela reconheceu sua verdadeira vocação. “Foi uma experiência muito intensa, era tudo muito puxado. A gente ficava de manhã até a noite no Circo. E depois veio um espetáculo sobre a Elza Soares (1930 – 2022), que criamos do zero. Eram duas sessões todos os finais de semana, exigindo muito de nós. E foi ali que eu percebi: se eu não gostasse de dança, se eu não quisesse me aprofundar nisso, jamais conseguiria continuar. Foi na dificuldade que eu entendi minha paixão pela arte.”

Exemplos como esses mostram que as atividades artísticas, portanto, vão além de um mero passatempo ou forma de lazer, uma vez que se configuram como um verdadeiro plataformas de transformação social. Kamilly Araújo conta a partir da sua própria experiência: “Mudou todo um conceito na minha cabeça sobre questões sociais. Me entendi como uma mulher não branca. Me entendi como uma pessoa LGBTQIA+. Entendi também como a arte poderia movimentar tudo isso dentro de mim: questão de raça, sexualidade, gênero e classe social. No Circo, me desenvolvi muito pessoalmente e percebi como a arte podia mudar todo aquele contexto para mim.”

Gabriel da Silva Santos também compartilha o impacto profundo que o Circo Social teve em seu processo de autodescoberta e no fortalecimento de sua autoestima. “Eu consegui me tratar com mais carinho, porque em casa não havia esse espaço. A gente não falava sobre sexualidade. E o Maia, nosso professor de teatro, abriu muito a nossa cabeça sobre isso. Até hoje, lembro dos conselhos e das coisas que ele me dizia.”

Apesar das barreiras psicológicas e dos desafios pessoais que esses jovens tiveram que superar ao longo de suas vidas, todos os integrantes do grupo Cia 7i8 compartilhavam um sentimento comum: por terem suas origens em um projeto social, sentiam que precisavam se esforçar muito mais, provar constantemente seu valor para a sociedade e para o mundo da arte.

Yuri Novais dos Santos explica essa realidade com clareza: “Nosso esforço sempre tem que ser dobrado. A gente é um dos poucos grupos aqui na região que ainda existe, que traz as doenças urbanas, que traz outro conceito de dança, e tudo isso com pouco recurso. Hoje, estamos ensinando na garagem da minha casa, mas nossa ideia é crescer. Estamos conseguindo fazer muito com o pouco que temos.”

No entanto, a falta de apoio institucional dificulta esse crescimento. “Outros coletivos poderiam ser fomentados de forma mais direta, porque, para acessar um edital, por exemplo, você precisa ter conhecimento de escrita, saber como montar um projeto. Mas e a educação na quebrada? Tem gente que mal sabia ler e escrever”, pontua um dos integrantes.

A luta constante para conquistar espaço também gera frustrações. “É resistência sobre resistência, uma luta diária. Às vezes, corremos, corremos, corremos… e ainda assim não conseguimos chegar nos espaços e nos lugares que gostaríamos”, desabafa Stephanie dos Santos Pereira.

A falta de apoio ao crescimento dos coletivos artísticos não se restringe às instituições, mas também se manifesta na própria comunidade. Lá, muitas pessoas ainda não compreendem o poder transformador da arte na vida dos jovens. Stephanie dos Santos Pereira reforça a importância de mudar essa visão: “É preciso chegar e mostrar onde você está e onde a dança te levou. Mostrar mesmo o que você trabalha, o que você faz, e dizer que, sim, a arte pode levar a lugares incríveis. Você pode trabalhar com isso, pode viver disso e não precisa se diminuir.”

Ela também destaca que a arte pode proporcionar tanto realização pessoal e bem-estar emocional quanto estabilidade financeira e profissional.

Kamilly Araújo complementa essa percepção, ressaltando que a arte transcende a esfera profissional: “A arte não é só para quem é artista, porque ela nos transforma. Ela transborda, cura e nos mostra que existem muitas formas de se expressar.”

Além de extravasar as subjetividades, a arte tem o poder de levar além, destaca Araújo: “

Ela finaliza, constatando o seguinte: “a arte leva a lugares incríveis, não só fisicamente, mas dentro da sua própria mente.”