
Créditos: Acervo UNAMCA; Thiago de Souza
Por: Laura Moraes e Giovanna Melim
O atual processo de restauração da capela, impulsionado pela luta da sociedade civil e pela criação do Memorial dos Aflitos, reacendeu o debate sobre a preservação da memória afro-brasileira em uma região marcada por transformações urbanas e disputas de identidade. A história da Capela dos Aflitos se inicia durante o século XVIII. Construída em 1779, a capela estava anexa ao cemitério dos Aflitos, destinado ao sepultamento de indigentes e escravizados condenados à morte, que não possuíam local para enterro nas igrejas ou cemitérios da época. A escolha do local se deu pela distância, na época, do centro da cidade. A capela, era um ponto de referência para a fé popular, especialmente em torno da figura de Chaguinhas, um soldado negro executado em 1821, que virou santo.
A construção está encravada no bairro da Liberdade, amplamente conhecido na atualidade como o abrigo da cultura japonesa em São Paulo. Com sua decoração típica, esse imaginário é reforçado pelo nome da estação de metrô “Liberdade – Japão”, que ofusca a profunda ligação da região com a história da população negra paulistana. Pouca gente sabe que o bairro foi, no século XIX, um dos principais pontos de enforcamento de pessoas negras escravizadas e alforriadas, com o Largo da Forca como espaço central dessa violência. Desde as primeiras décadas do século XX, iniciativas públicas e privadas começaram a promover uma espécie de apagamento simbólico da região, associando-a exclusivamente à imigração asiática e apagando as marcas físicas e culturais da presença negra e indígena.
A Capela dos Aflitos surge como um dos espaços de memória negra mais antigos e simbólicos da cidade. Testemunha de séculos de história, a capela, juntamente com o Cemitério dos Aflitos, que fica aproximadamente no quarteirão entre as ruas dos Estudantes, Galvão Bueno, da Glória e a Radial Leste. Carrega em suas paredes e em seu subsolo as marcas de um passado muitas vezes silenciado. No entanto, essa história fundamental para a identidade paulistana foi progressivamente apagada, substituída por uma narrativa dominante que apresenta o bairro como um reduto da cultura japonesa.
“Reconhecer essa memória é fundamental para que possamos construir uma sociedade mais justa e consciente. Quando falamos de memória, não nos referimos apenas ao patrimônio oficial reconhecido pelo Estado, mas à memória social, que é viva e pertence ao povo”, destaca Danielle Rocha, historiadora do Instituto Bixiga, uma associação de pesquisadores, fundada em 2015, que tem como iniciativa desenvolver atividades de pesquisa, cultura e educação popular.
Para Danielle, preservar a história dos povos negros e indígenas que marcaram a região da Liberdade é um ato de resistência e justiça histórica. “A luta do Instituto é para que essa memória coletiva seja valorizada e que inspire mudanças na nossa sociedade”, afirma.
A Capela dos Aflitos é um local singular em histórias e que remonta ao século XIX. “Ela é uma capela que está em um local muito particular, porque diferente das outras igrejas, ela não fica no meio de uma praça ou em uma rua ampla. Ela está em um beco, quase escondida, cercada por prédios, como se fosse uma memória esquecida, empurrada para fora da vista”, explica Danielle.
A historiadora detalha que a capela é cercada por um antigo cemitério, o Cemitério dos Aflitos, descoberto em escavações recentes, realizadas pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). “O quarteirão inteiro era o cemitério. Construíram edificações em cima desse cemitério, simplesmente ignorando o fato de que ali estavam enterradas pessoas negras, tanto escravizadas quanto livres. É um espaço sagrado, mas que foi transformado em um espaço esquecido”, lamenta.
Chaguinhas: uma história de fé e resistência

Créditos: Acervo UNAMCA; Thiago de Souza
O local é marcado pela devoção a Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, um mártir popular que foi condenado à morte e enforcado em 1821. “Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinhas, era um soldado negro que lutava por melhores condições para os militares, especialmente para os soldados negros. Foi condenado por liderar um motim e enforcado. Dizem que a corda se rompeu três vezes, o que foi visto como um sinal de inocência”, relata Danielle.
Chaguinhas se tornou uma figura de devoção popular, um símbolo de resistência. “Dizem que ele foi levado para a Capela dos Aflitos antes de sua execução. Acredita-se que ele teria ficado acorrentado em uma porta da capela, esperando pela morte”, conta Danielle. Embora essa versão seja baseada na tradição oral, é uma das memórias mais fortes ligadas ao local. “Quando a corda se rompeu três vezes, o público começou a gritar ‘Liberdade! Liberdade!’, pedindo clemência. Mas ele foi executado de forma brutal”, completa.
Lucas Lucêncio Almeida, diretor da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA) e coordenador do Museu dos Aflitos, reforça que a história de Chaguinhas é mais do que uma lenda. “Ela representa a luta dos oprimidos, daqueles que foram esquecidos, mas que não desistiram de lutar. E a Capela dos Aflitos é o espaço onde essa memória continua viva”, afirma Lucas.
O descaso do poder público e a resiliência da comunidade
A Capela dos Aflitos não só resistiu ao tempo, mas também à indiferença do poder público. “Desde 2018, a UNAMCA tem trabalhado de forma voluntária, em prol da preservação da Capela dos Aflitos”, afirma Lucas. “Todo o trabalho feito até hoje é um trabalho feito de forma voluntária”, completa.
Para Danielle, essa postura do poder público reflete um problema mais amplo na sociedade brasileira. “O poder público, infelizmente, ainda reflete uma correlação de forças, uma luta de classes muito presente na disputa pela memória”, explica a historiadora. “Quando mergulhamos nessas histórias populares, percebemos que há mais vitórias do que imaginávamos. A repressão do poder público sempre foi e continua sendo tão intensa porque a história de luta também é muito forte.”, reforça.

Créditos: Acervo UNAMCA; Thiago de Souza
Danielle também aponta para o racismo estrutural como um fator que contribui para o apagamento da memória negra de São Paulo. “Vivemos em uma sociedade que carrega uma herança colonial e escravista, e isso se reflete na nossa estrutura social. O racismo estrutural está presente em diversas esferas, seja no mercado de trabalho, seja no sistema penal. O Estado reflete essa estrutura desigual, privilegiando uma memória oficial ligada às elites e apagando memórias populares”, denuncia. Houve alguns entraves e algumas discussões por poder público em relação à preservação do sítio arqueológico Cemitério dos Aflitos. A pressão da sociedade civil, por meio do Movimento dos Aflitos, foi fundamental para que o poder público desse atenção às reivindicações da UNAMCA. “A pressão da sociedade civil feita a partir do Movimento dos Aflitos fez parte desse processo para que o poder público escutasse a UNAMCA e as reivindicações da sociedade civil em questão ao respaldo, em questão à preservação do sítio arqueológico, em questão da construção do Memorial dos Aflitos”, explica Lucas.
Danielle reforça que o poder público não apenas negligenciou a Capela, mas também contribuiu para o apagamento de sua história. “O cemitério foi simplesmente coberto por construções. Edificações foram erguidas em cima das sepulturas, e as ossadas foram ignoradas. Esse é o retrato do descaso. O que era um espaço sagrado, onde pessoas negras foram enterradas, foi transformado em um ponto comercial”, denuncia.
Lucas também conecta o descaso com o apagamento histórico da memória negra na região. Ele argumenta que a própria forma como a Capela está “engolida por prédios” é uma forma de apagamento. Ele critica o processo de transformação da Liberdade em um bairro asiático, que, segundo ele, contribuiu para ignorar memórias como a da Capela e do Cemitério dos Aflitos. “A gente tem alguns indicativos de que é um processo de apagamento. A própria forma como a capela está disposta atualmente, engolida por prédios, é uma forma de apagamento.” relata.
O Papel da UNAMCA e a Reparação Histórica
Para Thiago de Souza, também membro da UNAMCA, a atuação da associação é fundamental para a reparação histórica da memória negra na Liberdade.

“A UNAMCA tem adotado diversas ações”, explica Thiago. “Uma delas é a organização de visitas guiadas, que permitem que o público conheça a história da Capela e do Cemitério dos Aflitos. Também promovemos atividades culturais e educativas, incluindo o grupo de estudos. Além disso, atuamos na preservação do espaço físico e na interlocução com o poder público, como ocorreu recentemente com o restauro da Capela, um projeto que só foi possível graças ao engajamento da UNAMCA. Nós lutamos para garantir que esse patrimônio seja reconhecido e preservado, não apenas como uma construção física, mas como um símbolo de resistência e memória.”
Thiago também destaca a importância do reconhecimento territorial e histórico da presença negras e indígenas na Liberdade. “Não se trata de excluir ninguém, mas de dar visibilidade a essas histórias que foram esquecidas. E isso passa por ações concretas, como o reconhecimento oficial do Cemitério dos Aflitos e a valorização da Capela como patrimônio cultural. É uma questão de justiça histórica. Não se trata de vingança, mas de dar voz e espaço a uma memória que foi intencionalmente apagada. É garantir que essa história seja conhecida e respeitada pelas futuras gerações”, afirma.
O Museu dos Aflitos se consolida dentro da Capela como um espaço de memória e luta, com um papel fundamental na transformação social. Lucas Almeida destaca que o museu tem como missão institucional “garantir os direitos fundamentais da memória e a verdade sobre a escravidão e o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas no Brasil”.
Lucas explica que o Museu dos Aflitos nasceu da necessidade de preservar essa memória de forma ativa. “A Capela é um símbolo de resistência, mas o museu é o espaço onde essa história é contada, estudada e transmitida para as próximas gerações. Recebemos estudantes, promovemos visitas guiadas, oficinas e debates”, detalha.
O acervo do museu é vivo, em constante crescimento. “Ele começa a coletar mesmo dos eventos que estavam acontecendo com o Movimento dos Aflitos, né?”, explica Lucas. “Depois, alguns pesquisadores, fotógrafos, produtores audiovisuais também coletaram muito material, vão doando ao museu, vão colocando à disposição as doações de gravações das festas, né? Dos festejos, das próprias reivindicações do Movimento dos Aflitos”, completa. “A comunidade também doa objetos que eles acham importantes sobre as suas instituições, suas entidades, sobre a garantia dos direitos fundamentais”, acrescenta.
A Complexa Relação com a Comunidade da Liberdade
A relação da Capela dos Aflitos com a comunidade da Liberdade é um tema complexo e multifacetado, Lucas aponta para a necessidade de desconstruir alguns equívocos sobre a região.
“Se a gente for pensar o entorno da Capela, a gente está falando que a parte de baixo, em sua maioria conhecida como Baixada do Glicério, nunca foi um reduto de comunidade”, explica Lucas. Ele ressalta que os imigrantes japoneses inicialmente se estabeleceram nas áreas mais baixas do bairro, como a Rua Conde de Sarzedas.
Além disso, Lucas destaca que a Liberdade atual é um bairro multiétnico, com forte presença de imigrantes africanos e latino-americanos. “As próprias pesquisas municipais já apontam que a Liberdade não é o bairro mais japonês, né? De adensamento da população japonesa. A Saúde, na zona sul de São Paulo, atualmente, é o bairro que tem mais adensamento da população japonesa”, afirma.
O processo de transformar o bairro da Liberdade em um reduto asiático, iniciado nos anos 1970, é visto por Lucas como um fator que contribuiu para o apagamento de outras narrativas históricas. “Foi uma proposta comercial, uma proposta segregadora que vai causar apagamentos sistemáticos, também de forma proposital”, denuncia.
No entanto, o diretor da UNAMCA aponta para a existência de laços entre a Capela e a comunidade local. “A gente tem muitas pessoas idosas nipo-brasileiras que já frequentam a Capela dos Aflitos há muito tempo. Então isso é um indicativo de como também a fé já levava essa comunidade para esse espaço também, né, essa comunidade japonesa”, observa.
Descobertas arqueológicas expõem o passado negro ocultado na Liberdade
O Projeto de Lei 17.310/2019, sancionado pelo prefeito Bruno Covas em 28 de janeiro de 2020, cria o Memorial dos Aflitos em São Paulo, destinado a preservar a história e memória da população negra que viveu na região durante a escravidão. Mas desde então, nenhum tipo de memorial foi criado.

Créditos: Acervo UNAMCA; Thiago de Souza
A luta pela preservação da Capela dos Aflitos se conecta diretamente ao desafio de garantir que o Cemitério dos Aflitos, um sítio arqueológico descoberto em escavações pelo Iphan. As escavações ocorreram em uma área considerada de interesse arqueológico, por estar próxima a locais de memória importantes da Liberdade, como a Praça João Mendes, a Paróquia São Gonçalo, a Avenida Liberdade (antigo caminho de Jeribatiba), a Praça da Liberdade e a Igreja Santa Cruz da Alma dos Enforcados. Estamos falando de um espaço onde pessoas negras foram enterradas em valas comuns. E, mesmo assim, quase foi destruído por obras imobiliárias”, denuncia Lucas.
A criação do Memorial dos Aflitos é uma tentativa de garantir que essa memória não seja esquecida. “É uma luta constante. O memorial não é apenas um monumento, é um espaço de reconhecimento, um símbolo de resistência”, afirma Thiago de Souza.
Danielle reforça que o Memorial dos Aflitos não é apenas uma homenagem, mas uma reparação histórica. “É o mínimo que se pode fazer por aqueles que foram esquecidos e apagados da história oficial. É uma forma de dizer que essas vidas importam, que essa história importa”, afirma.
O Futuro da Capela e do Museu: um legado para as próximas gerações
O processo de restauração da capela e a manutenção do museu são apenas o começo de uma longa jornada. “Nossa luta é para que a Capela dos Aflitos e o Museu dos Aflitos sejam reconhecidos como patrimônios culturais e históricos da cidade, não apenas por suas estruturas, mas pelo que representam: resistência, memória e identidade”, conclui Lucas.
Para o futuro, a UNAMCA e o Museu dos Aflitos planejam ampliar suas atividades educativas e culturais, fortalecer parcerias e continuar lutando para que a história negra da Liberdade seja conhecida e valorizada. “Queremos que as próximas gerações conheçam essa história, não como uma curiosidade, mas como parte da identidade de São Paulo”, reforça Danielle.

Créditos: Laura Moraes e Giovanna Melim.