Marta entrou no edifício antigo. Tinha compromisso marcado no sábado. Iria encontrar os netos. Mas parou para acompanhar o sarau de dança urbana que aconteceu no pátio da Estação da Luz. Não só observar, como muitas pessoas que estavam indo e vindo, a costureira adiou um pouco o horário. Aproximou-se do grupo de dançarinos e arriscou alguns passos leves e discretos, ainda com a bolsa no ombro, ao som de Get Lucy do Daft Punk.
Aos 65 anos, Marta Oliveira é aposentada, mas passou boa parte de sua vida na região da Rua Três Rios. Lá, mantinha uma pequena loja de costura dentro de uma galeria, próxima ao agito do hoje popular comércio de roupas. Há mais de 20 anos, realiza reparos em roupas e costura sob encomenda vestidos de festa, como os bordados de muitas formaturas. Ela comenta sobre a mudança no comércio ao longo dos anos: “Tinha muitos pedidos antes, eu atendo gente de todo lugar aqui na região. Precisava de ajuda com o volume. Hoje, não.” Foi assim que criaram seus dois filhos, Edgar e Sara, nascidos e criados no bairro, e suas três netas, Liz Maria, Aurora e Mariana.
Marta veio morar no Bom Retiro por conta de seu falecido marido, o imigrante Guilherme Salazar Quisbert. Naquela época, tinha um pequeno comércio onde vendia de tudo um pouco. Guilherme faleceu há mais de dez anos. A viúva conta que o marido, antes de morrer, sonhava em escrever um livro com a história de vida e todas as dificuldades que passaram antes de se mudar para o bairro e casar: “Sempre que algum vizinho precisava de ajuda, ele estava lá, sabe? Conhecia todo mundo”, completa.
No caminho para pegar o metrô, a mãe de Edgar e Sara não passou pela Praça Coronel Fernandes Prestes. E por não participar da comunidade coreana do Bom Retiro, Maria, que tem contato com a cultura latina do bairro, não fazia ideia sobre o 1° Festival de Kimchi acontecendo a alguns metros do sarau na Luz.
Em 2023 comemoramos 60 anos de migração coreana no Brasil. O vereador Aurélio Nomura, apoiador da comunidade, conseguiu aprovar a lei para criar o Dia do Kimchi em 22 de novembro. O 1º Festival do Kimchi em São Paulo aconteceu ao mesmo tempo que o evento de dança na estação. No sábado, 18 de novembro, na praça em frente ao Arquivo Histórico Municipal.
No palco, os grupos de jovens dançando K-pop, protegidos da temperatura em 38°C, e o público espalhado pela praça coberta de árvores, algumas pessoas pedindo o prato tradicional coreano, uma espécie de salada, nas barracas de comida da feira gastronômica.
O projeto “Boxe Autônomo”, localizado na Rua Três Rios 252, mesmo endereço da “Casa do Povo”, centro cultural do Bom Retiro, cumpre hoje um papel que as políticas públicas do governo de São Paulo deveriam, atendendo cerca de 330 alunos do bairro entre os dias de segunda à quinta-feira.
As aulas são em sua maioria ministradas pelo professor Michel de Paula Soares, 31, doutorando em antropologia pela Universidade de São Paulo e professor de boxe e residente do bairro desde seu nascimento.
“Começamos o projeto com o intuito de reunir amigos para preencher nosso tempo ocioso. Com o andar da carruagem, redescobrimos o poder de transformação e mobilização que o esporte pode ter na vida de um jovem periférico”, afirmou o professor.
Mesmo com pouco investimento a paixão pelo esporte e os talentos continuam a florescer aqui em nosso país e, mesmo que boa parte dos jovens periféricos comecem a se envolver com o esporte visando a ascensão financeira, o projeto “Boxe Autônomo” tem o objetivo de atender todas as demandas de seus alunos, que, claro, pertencem a diversas faixas etárias.
Dentro desta realidade, Michel de Paula Soares, ou Professor Michel como mais é conhecido, populariza o boxe para o Bom Retiro. Morador da comunidade há mais de 30 anos, o pugilista há mais de uma década leva os ensinamentos da arte marcial para a comunidade do centro da cidade.
“Por uma certa ‘ignorância’ de quem vê de fora, pode até parecer que somos bárbaros, que juntamos adultos para brigar ou incentivamos garotos a fazer isso, mas a grande verdade é que o boxe ensina muito sobre disciplina e respeito”, diz.
Em julho deste ano, o governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, confirmou a intenção de realocar a cracolândia para as imediações do distrito do Bom Retiro, na região central norte da capital paulista. O local, que já é conhecido pelos índices de furtos, enfrenta novo cenário que pode agravar a situação.
Detentor de uma herança patrimonial, o bairro do Bom Retiro tem como o motor principal de sua economia o comércio de roupas. Desde o final do século XIX, o bairro é conhecido por aderir às culturas estrangeiras, sendo que primeiro chegaram os imigrantes italianos, depois os judeus e, atualmente, a comunidade sul-coreana é dominante no distrito.
Por também ser conhecido como um bairro comercial, o Bom Retiro atrai alguns delitos. De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, houve, em 2022, 3.818 furtos no local, além de 1.100 roubos. O cabo da polícia militar Thiago Camargo, 41, corroborou com os dados ao comentar: “Nossa principal preocupação aqui no bairro são com os furtos, principalmente se tratando de comércio”. Próximo à estação da Luz, o COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo), é quem lida com a maior parte dessas denúncias.
Segundo levantamento do portal R7, nos dois primeiros meses de 2023, o Bom Retiro figurou entre os 10 bairros com o maior número de furtos de celular. O mesmo estudo aponta que 40% desses crimes ocorreram durante o período da tarde, em que os moradores estão retornando para casa.
Com a mudança de localidade da cracolândia, hoje já se pode registrar um aumento significativo de pessoas em situação de rua. O medo da população se deve à imprevisibilidade das ações dos realocados no cotidiano do lugar. Em contrapartida, mesmo com as aproximações recentes dos usuários de drogas, o soldado Camilo Dantas, 29, afirma que o quadro de pequenos delitos ainda não teve alteração, mas deixa um alerta: “Por enquanto está tranquilo, principalmente aqui no interior do Bom Retiro, mas ao chegar próximo das estações, fica mais complicado”.